quarta-feira, 3 de dezembro de 2008



Resenha do livro Manuscrito Marítimo realizada por Elaine Pauvolid


publicada no site


http://www.aliasrevista.com.br/


Luis,
finalmente consegui me dedicar à leitura do seu livro Manuscrito marítimo. Espero que me perdoe a demora. Gostei muito dos poemas. Especialmente alguns versos como:

"São palavras
como conversas de dedos,
entre ramos de outros dedos."

Belíssima imagem de A dívida, o último poema do livro. Gostei muito também de alguns poemas cunhados de uma nostalgia feliz onde risos de crianças e o frescor da adolescência parecem emanar como trilha sonora. Um som que canta noutra esfera enquanto lemos. Uma transmutação de memória em som e de som em imagem que se presentifica no ato de ler, como é o caso de Um dia para dentro de outros dias, o poema que abre o livro :

"Vidro de janela quebrado
porque nele bateu a bola
de um futebol invisível.

Rodas de rolemãs,
aço e carne
esfolados nas calçadas.

" Seguindo estes versos, Sérgio, digo que tenho saudade do carrinho de rolemã que conheci e até pouco tempo havia ainda nas ruas da zona sul do Rio. Não aquele que as crianças brincavam, mas os que os meninos na feira ofereciam para levar as compras. Até eles sumiram, Sérgio. Não os tenho visto mais... Onde será que eles estão?

Depois o poema segue e vem com estas pérolas:
Cortes de canivete.
Cascas de lápis
caídas nos cantos das salas
como asas de insetos.

Acho interessante sermos originais em algumas coisas e noutras nos repetirmos. Também tenho versos sobre rodas de rolemã e sobre asas de insetos. E acharemos muitos outros poetas que falaram sobre estes significantes. Afinal, são poéticos!
Talvez a alegria seja mesmo perceber, de quando em vez, que vimos o mesmo, com outras nuances em lugares distintos, que temos semelhanças no ato de encantarmo-nos. E assim passei a entender porque alguns teóricos dizem que o pôr do sol é poético. Sim, há coisas que são poéticas, estou me dando conta. Antes, na minha saudável e profícua arrogância juvenil, achava que tudo era ilusão, tudo construção e ainda que não estivesse de toda errada, não percebia que algumas coisas que os homens constroem passam a ter uma espécie de alma. Afora estas considerações, o que importa é como falamos das coisas. E acho que você fala bem neste livro das coisas que são poéticas. E continua o poema:

Qual o plural de lápis
numa tarde antiga, imprevisível
em mil novecentos e sessenta e cinco?

Coração
numa parada-andando.
Coração
engomado, músico de tambor.

Num dia 7, lembro
era um lógico setembro:
Os cavalos mais brancos iam na frente.
As nossas luvas
nos impediam de segurar qualquer mundo.
(...)

Também me chamou a atenção o poema Os barcos: nossa semelhança, onde destaco alguns versos:
Seremos
um barco
destes que pousam velas como braços,
e descansam sobre a linha do horizonte.
(...)

Seremos a volta inexplicável
de um barco
ao porto dos donos dos dilúvios e das tempestades.

Muito interessante a forma como pensa o tempo em Um espaço para navegar. Nele você parece imaginar e nos faz imaginar um tempo para o próprio tempo. Inventa um relógio para o tempo, como se o tempo fosse algo como nós somos, algo de material e palpável que precisasse, ele também, de um sistema de contagem para sua vida de tempo. Um interessante jogo de paradoxos que nos remete ao coelho de Alice. Um coelho sempre com pressa, eis o nosso tempo. Ou será que nós é que temos aprisionado nosso tempo, nossa vida, em tempos com relógios em seus pulsos? Como se o tempo não fosse puramente a expressão maior da liberdade... O tempo bom, o tempo que nos orienta. Onde está este tempo? O interessante é que, neste poema que fala sobre o tempo, o título traz espaço. Isso dá ao leitor uma rede de significantes que o levam a pensar em tempo e espaço, a se questionar sobre ambos, ou ao menos ter a sensação de que não são conceitos fechados quando vistos de perto, ou por um artista. E ainda há a menção clara a respeito do espaço, do mar navegado, porque o ato de navegar sempre será preciso e precioso.

"Tinha um galope o tempo e seus metais,
escorria lento
entre árvores e sombras, corria atroz
na boca das sabiás,
na locomotiva, no rio,
e assim por onde morava o tempo carregava um relógio
movido por outro tempo, sendo tempo em outro tempo-espaço
com suas caixas de formas minerais.

(...)

Parto de cada cio:
-magicio
Parto /Parto/Porto.
É um porto
te dizer que tenho sido um barco.
Não, não chegar
todo cais é um caos.

Lindíssimo o poema Saudade:

Minha saudade faz um barco
no oceano dos teus olhos.
Se me faltam portos
não irei partir.
Se me sobram mortos
não irei pousar.
É minha saudade
um barco enferrujado
que espera na maresia o casco ruir:
pedra de sal
no oceano dos teus olhos.

Li Saudade como canção, tal a musicalidade a ele intrínseca, o que aponta o seu lado de músico, outra área que domina. E não me parece ter sido à toa que na seqüência você insere o poema-discurso Companheiros. Nele não há música, apesar de haver o ritmo das palavras bem colocadas, dos discursos para multidões. O poema traz um Luis Sérgio sobre um caixote ou num coreto falando para seus iguais e desiguais : (...)na vontade dos corpos, das famílias,das máquinas,e dos animaissoltos, e de um estranho ritmo no destino dos prisioneiros. Ritmo em seu estado puro, contrastando com o musical Saudade. O dia-a-dia das obrigações em silêncio bem marcado. Marcado por outros silêncios, palavras de concreto, palavras-máquina, palavras duras das sobrevivência não necessária, mas obrigatória. O avesso do navegar musical de antes. O que tem toda pertinência tomando o livro no seu conjunto, como é sempre para ser tomado.

Realmente, Luis Sérgio, eu poderia me estender ainda na seqüência do poema Imaginar também pode ser real mas deixo o seu livro sobre a mesa, no convite para que outras pessoas realizem seu mergulho no imaginário e possam experimentar as delícias livres da leitura.
Parabéns!

Elaine Pauvolid

Rio de Janeiro, 12 de março de 2009.



É a segunda resenha da coluna Debucs on Deteibou, clique no botão "resenhas" do lado esquerdo da tela.

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Foto encaminhada pelo poeta Carlos Sá realizada durante o lançamento do livro na Academia Campista de Letras:






Nesta noite foi realizado um lançamento em conjunto com outros autores.

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